Fugir para sonhar; inserir-se para modificar
Conceição Evaristo

Cosmopolíticas do cuidado no fim-do-mundo: gênero, fronteiras e agenciamentos pluriepistêmicos com a saúde coletiva

O que é o projeto Cosmopolíticas do cuidado?

Sobre o fim do mundo ouvem-se muitas verdades, fatos, pensamentos e ventanias. De alguma forma, para algumas formas humanas, esta parece ser uma grande novidade. Boas intencionalidades acadêmicas e políticas se deparam com a notícia do fim do mundo e, no melhor dos casos, “acreditam” nela e parecem se preocupar.

Contudo, há gentes, bichos, plantas, mundos e redes para os quais o tempo já acabou. Muito tempo atrás, muitas vezes, o mundo já acabou. E não foi uma notícia. Há redes para as quais o mundo é um constante acabar sem (um maldito) fim.

A notícia do fim do mundo nos obriga a pensar sobre quem pode se surpreender com o fim do mundo. Como é possível que para mim e ou para você o mundo, a estas alturas, não tenha ainda acabado? Quais as condições de privilegio e excepcionalidade que fazem com que na ida e volta cotidiana à padaria o mundo possa ser sentido como uma garantia sem tempo? Ou já acabou e eu não soube? Eu sou o hábito de um mundo emergido dos restos de outro? Uma espécie de habitante de um mundo após o apocalipse, fertilizado pelos restos orgânicos de outro?

Todavia, há seres humanos e não humanos, vivos e mortos, pessoas, redes e mundos, para os quais o Mundo é essencialmente uma Ameaça. Dizemos o Mundo da Modernidade, do Capitalismo, incluindo as Políticas Públicas, Ciência, Saúde, Segurança, Estado, Democracia. O Mundo como aquela montagem que se pensa única, em maiúsculas e sobre cujo fim não podemos sequer…

Contra o Mundo, através das Ameaças, encontramos todo dia seres, gentes, redes e mundos que refletem, produzem conhecimento, lutam, resistem, persistem, florescem, gozam, inventam outros mundos, proliferam. Quiçá hoje mais do que nunca. Nozes e nóix que não são todos nós, não se engane. Às vezes a persistência e o cuidado acontece em enredamentos estranhos e confusos, ambíguos; às vezes em franca guerra; às vezes no paralelismo exorbitante de mundos forjados; às vezes em mimeses sedutoras e perversas… E sempre através dos limites externos do Mundo, entre prisões, biomas “selvagens” ou impossíveis, rios majestosos ou subterraneamente encanados e tornados esgoto; fronteiras, beiradões, puteiros, encruzilhadas, ruas escuras, corpos abjetos, terreiros demasiadamente juvenis, sexualidades indizíveis, pretitudes, benzimentos que deveriam ter desaparecido em línguas que ninguém mais fala aqui; excessos, escassezes e exorbitâncias.

Nestas guerras e resistências, nestas notícias infames, ser mais pobre, mais índia, mais preta, mais puta, mais irregular, mais belíssima, mais promíscua, mais gay, mais bixatravesti, mais inquieta e irrefreável, mais-que-mulher, faz diferença. O Mundo, esse que produz medo sobre seu fim, foi o mundo do patriarcado, da escravidão, do rasgar e penetrar a floresta, dos exércitos povoando as terras com seus corpos de homens, dos missionários penetrando e fertilizando com Deus, dos machos legais e ilegais com seus pistolinhos feridos apontando ao Futuro e matando suas mães, dos bons e velhos líderes que lutaram por nossos direitos. No fim do mundo como no cuidado ser feminista importa.

Este projeto entende que o campo acadêmico e político mais formal e tradicional, mesmo o “progre”, “do bem”, “de esquerda”, participa ativamente desse Mundo-enquanto-Ameaça. Entendemos que a Saúde Coletiva faz parte desse campo, incluindo aí suas formas acadêmicas e suas práticas através do Sistema Único de Saúde. O mesmo pode ser dito da Antropologia; as duas bases de confiança e pertencimento acadêmico-institucional deste projeto. Participam e continuarão participando se não se desmontam e reorganizam para tempos vindouros que já chegaram; se não reorganizar sua lógica de alianças político ontológicas.

Nesse marco, este projeto se propõe entender, em relações de conhecimento mais cuidadosas, as formas através das quais estas Ameaças, resistências, cuidados, mundos acontecem. Entender e mostrar melhor como é que a Saúde – aquela benesse- torna-se de fato uma Ameaça, uma fonte de violência e morte para, não casualmente, algumas pessoas. E não outras.

E nos interessa conhecer como redes e coletivos, especialmente guiados por mulheres, sujeitos femininos e pessoas trans dispõem, espalham, espelham, experienciam práticas e relações do que entendemos como um “Cuidado com”, contra, através, apesar do Mundo, suas Instituições e Saberes.

E então nos interessa interpelar o campo da saúde coletiva e, na sequência, o do campo científico-acadêmico moderno, a partir dos conhecimentos e experiências de – e aprendidos com- essas pessoas, redes, coletivos e territórios que sempre foram imaginados como necessitados do Estado, da Lei, da Ciência, do Desenvolvimento, da Sustentabilidade, como vulneráveis, como objetos da tolerância e da benevolência Modernas. Interpelar quer dizer questionar, impactar, modificar.

Vale dizer que para este projeto o tal do fim-do-mundo é uma espécie de dispositivo de provocação ético-política-afetiva intelectual para reelaborar nossas práticas de conhecimento e nossos arranjos existenciais e reorganizar o que entendemos por Estado, políticas públicas, saúde, etc.. Esta provocação é feita a partir da construção de cenários complexos, “radicais”, limítrofes, derradeiros (?), sem retorno, sobre o Mundo, o mundo e particulares mundos em relação…

Como, então, aquelus que o campo da saúde costumou imaginar e definir como “outros” mobilizam práticas que chamamos de cosmopolíticas do cuidado para enfrentar, resistir, atravessar e persistir o fim-do-mundo, relações de Ameaça, adoecimento e fim infinito, tortura, abjeção e morte sistemáticas?

Como, entendendo estas práticas cosmopolíticas do cuidado, estes conhecimentos pluriversais, estes mundos, suas ameaças e seus fins, podemos participar nos turbulentos processos atuais de necessária reconstrução do projeto brasileiro da Saúde Coletiva? Há algo de todo esse sistema exorbitante, carnal, irreconciliável, multisócionatural, disjuntivo e cosmopolítico de conhecimentos que possa lhe servir ao campo da saúde, a seus profissionais e intelectuais, como aprendizado?

“Cosmopolíticas do cuidado no fim-do-mundo” é um projeto de pesquisa e formação que funciona a partir de redes de redes. Ele é um processo, um cesto permanente de conexão de exorbitâncias, de projetos, de iniciativas, de saberes e ciências, de pessoas e redes, de margens e periferias, através do qual busca-se favorecer a formação de estudantes e pesquisadoras da área da saúde em perspectivas cosmopolítica e pluriversais. Buscamos alimentar, comunicar e celebrar novas alianças de produção de conhecimento incluindo pessoas acadêmicas em diversos níveis, âmbitos e instituições, bem como pessoas não-acadêmicas e mais-que-acadêmicas.

Por muitas razões, o projeto Cosmopolíticas do cuidado se constitui tendo como chão e foco a Amazônia, aquela construção mito-histórica e geopolítica. O projeto existe em relação com a Amazônia. Não como uma alteridade distante ou lugar carente, muito menos como um fim-do-mundo. A Amazônia aqui é o centro do mundo; uma aliança política de pensamento e de produção de conhecimento com a qual São Paulo e o resto do Norte Global, os processos de Desenvolvimento, Higiene, Civilização e Sustentabilidade tem uma dívida impagável. A Amazônia, como uma territorialização da alteridade da Modernidade, deve ser envolvida aqui como um agenciamento de conhecimentos sobre ameaça, saúde e cuidado.

Localizadamente, e em função de trajetórias de pesquisa anteriores, a Amazônia, neste projeto, é especialmente as cidades fronteiriças de Tabatinga e de São Gabriel da Cachoeira (AM), com seus complexos transfronteiriços de referências, em triangulação com Manaus e em conexões (empíricas e analíticas sendo construídas) com São Paulo.

Esta viagem cosmopolítica por exorbitâncias do cuidado está organizada a partir de 6 parcelas ou sítios, encruzilhadas, quartos, “futuros”: isto é, recortes operativos que dizem respeito a relações específicas entre focos territoriais, redes, sujeitos, questões e alianças pré-existentes ou sendo construídas.

> Objetivos (missões)

> Parcelas

Parcela 1 | Parcela 2 | Parcela 3 | Parcela 4 | Parcela 5 | Parcela 6 | ACERVO DE MATERIAIS