Sofia

Provedoras na prostituição ‘quebrando a maldição’ em Manaus II

Por Natânia Lopes

Sofia tem vinte e quatro anos e começou na prostituição aos treze. Tem uma filha de quatro anos, J., com quem vive, na casa que construiu em cima da casa da avó paterna, que ajuda a cuidar de J. Nós nos encontramos num “café superfaturado”, convite que ela me fez quando já ia eu pensando em chamá-la para tomar cerveja. E que bom! Também prefiro café superfaturado à cerveja. A partir do convite de Sofia e de sua apresentação, fiquei pensando nessa figura da puta de luxo. O que é uma puta de luxo? “Puta de luxo é uma contradição de termos”, eu disse na minha tese, uma vez que o significante “puta” muito frequentemente está associado à sujeira, doença e marginalidade.

Noutro sentido, a “puta de luxo” me parece sublinhar a contradição que subjaz à imagem de toda puta: penso especialmente numa certa relação com o consumo e os objetos. Objetos caros ou sofisticados aparecem descontextualizados, sob a agência de mulheres prostitutas. Uma espécie de delírio do consumo que na maior parte das vezes é incapaz de sustentar um crescimento consistente, do ponto de vista socioeconômico (qual é a relação do trabalho sexual com a mobilidade social nas trajetórias de mulheres prostitutas?). Entre luxos pontuais, elas consomem perfumes de oitocentos reais, espumantes de dois mil. E aquele perfume fica ali a destoar do quarto modesto. A espumante provocando uma fissura da cena, na casa.

A ideia de fissura ou fenda me parece boa para pensar isso: que a posse e manuseio de determinados objetos caros, bem como a frequentação de certos espaços que as putas de luxo acessam, constituem pequenas fendas nas expectativas de uma vida que é, de saída, imaginada sem essas coisas e distante destes cenários. Com sorte, essas fendas espaciais produzirão, enquanto experiências localizadas, mas que oferecem frágeis oportunidades e produzem repertórios, linhas de fuga de um estado de precariedade apriorístico pelo pertencimento a famílias pobres e a contextos socioeconômicos degradados.  

O programa de Sofia custa entre oitenta e cem reais. O café que tomamos custou quase três vezes esse valor. Ela chegou com um vestido rosa feito por sua mãe, que também foi prostituta e hoje tem uma lojinha de corte e costura no centro de Manaus, lugar que a moça ajudou a comprar para que a mãe saísse da prostituição. Sofia relata vergonha em se prostituir. Diz que fala mal de prostitutas com as amigas de infância, que não sabem sobre o seu trabalho. A avó paterna, com quem vive, também não sabe.

-Eu vivo uma vida dupla – disse – É diferente das outras mulheres da oficina*. Elas são daquele jeito extrovertido, falam besteira e palavrão o tempo todo… 

-Mas você fala besteira e palavrão na zona? Porque você disse que vai de vestido longo. Imaginei você desse jeito que está aqui; educada e silenciosa na zona também. Você fala sacanagem pros clientes?

-Sim. Eu sou quieta. E só falo sacanagem pros meus clientes fixos.

-Então não é tão dupla assim, a vida, eu disse.

Manter em segredo a profissão, para Sofia, não é um algo pontual, como se ela operasse por retirada ou decréscimo (de informações). Não se trata de mera dissimulação, ou da omissão simples de fatos do seu dia a dia ou de sua experiência. Ela se implica profundamente na produção de uma ficção de cisão, como uma outra ordem de ocultação/revelação. Para dar conta de sustentar esse segredo fingindo diante da avó e das amigas de infância, do bairro, Sofia faz uma espécie de “costura de reforço” do seu segredo. Diz que deixa tudo para trás quando sai da zona e vira a esquina voltando para casa. Sua vida é “dupla”.

Curioso é que esse segredo esteja relacionado ao contexto em que, da parte da família da mãe de Sofia, há gerações de mulheres que foram ou são prostitutas. Falei para ela do livro de Gabriela: filha, mãe, avó e puta. Mas, no livro, trata-se de Gabriela em cada uma dessas posições. Aqui não. Sofia é neta de Amanda, prostituta, que também compõe o grupo de interlocutoras da pesquisa. Amanda tem três filhas prostitutas. E duas netas prostitutas. Uma delas, Sofia, que me disse que também a mãe de Amanda era prostituta. 

Convidei Sofia para escrever um livro. Ela ficou animada.

A mãe de Sofia engravidou dela com doze anos. O pai tinha quinze e era usuário de drogas. Disse que batia muito na mãe. Quando Sofia nasceu, foi deixada aos cuidados do pai e a mãe foi embora, ainda menina, trabalhar como prostituta. O pai faleceu quando ela tinha cinco anos, tendo ficado então sob os cuidados dos avós paternos. O avô morreu um tempo depois e a avó teve um câncer de mama e precisou ficar muito tempo internada, em tratamento. E daí Sofia, então com onze anos, passou a ser cuidada pelo tio-avô e sua mulher. Com doze, perdeu a virgindade. Com treze, o tio perguntou a ela se ela não queria transar por dinheiro com amigos da empresa onde ele trabalhava. Que transar de graça não fazia sentido. E que ela tinha que ajudar nas contas da casa. Sofia então passou a fazer programas com os conhecidos do tio. O tio ou a tia iam de carro com ela e o cliente e esperavam no banheiro do motel até o programa acabar. Ela recebia setecentos reais por programa e ficava apenas com cinquenta. Os tios ficavam com o restante.

Ao contar sobre isso, Sofia desestabiliza quem escuta. Por isso, vou tentar me concentrar no que ela diz, sem interpretar. Conta que poderia ter dito não para a proposta do tio, mas disse sim. Que ela não foi forçada a nada. Foi consultada e aceitou a proposta. Ela se vê no lugar de quem podia consentir e escolher, de modo que dizer a ela, como eu disse, que uma menina de treze anos não pode consentir e decidir a esse respeito, pode sublinhar um sentido de violência para o que lhe aconteceu que a entristece e confunde. Ela titubeia a respeito do sentido de violência do que se poderia entender como exploração sexual. Não nega e não afirma. E compreende perfeitamente os termos que contornam a questão. Ela fala aborrecida apenas da divisão do cachê. A “exploração sexual infantil” paira num limbo que se constitui entre ela, o interlocutor perturbado pela narrativa e os sentidos em jogo, sem pousar. Enquanto diz que gostava do tio e que ele foi como um pai para ela, que o tio e a tia a protegiam e tinham o cuidado de acompanhá-la nos programas, também diz que evita ir à farmácia que tem como dono um de seus clientes dessa época. E que quando passa por ele na rua, não lhe dirige a palavra e o evita. Quando Sofia falou sobre isso na oficina, as mulheres todas pareciam também muito mais indignadas com a divisão do cachê que com o “agenciamento” de uma menina menor de idade pelo tio.

Sofia me pareceu uma moça triste. Contei a ela sobre essa minha impressão. Ela disse que sofreu muitas perdas. Também perdeu um bebê, seu primeiro filho, aos quinze anos, quando se casou e engravidou pela primeira vez. Disse que acredita que todos temos uma tristeza. E que se permite ficar um dia inteiro na cama quando está muito triste, mas dois dias, não.

Ela se aproximou da mãe há pouco tempo. Dizia que não perdoava a mãe por tê-la abandonado. E que só agora entende que ela não teve condições de cuidar dela por ser muito jovem e sem uma estrutura de suporte familiar. Por isso procura cuidar intensivamente de J.  (“se rasga” pela filha). E cuidou também da filha do casal de tios que a levava para fazer programas. Essa menina hoje tem doze anos. O tio teve uma depressão severa e cometeu suicídio.

Diz que não se envolve com nenhum homem para não tirar o espaço da filha: “Imagina se eu arrumo um namorado. Ele vai querer dormir às vezes na minha casa e vai tirar o espaço de J. Uma menina pequena. Tenho que ter cuidado com ela”. Cuidado como renúncia, em prol da proteção da filha. Contou-me que a avó paterna, com quem vive e que cuidou dela (Sofia diz que teve uma infância feliz com os avós, embora se sentisse abandonada pela mãe) fala que a prostituição é uma maldição no lado materno da família de Sofia.

E ela fala que isso pode ser verdade. E diz para a prima prostituta, que também tem uma filha menina, pequena: “vamos combinar que parou na gente. Vamos quebrar isso”. O curioso é que, segundo ela, já se pode ver que a maldição foi quebrada, nas crianças. “Nós já conseguimos quebrar isso na F.” (sobrinha)

Essa quebra exigiu o “rasgar-se”, termo que ela usa para se referir ao fato de trabalhar com prostituição a despeito de não gostar do que faz.

A centralidade do cuidado da filha no discurso de Sofia, cuidado esse, como apontei, atravessado pela renúncia (a um namorado ou companheiro; ao sexo como fruição e afeto e até ao próprio corpo, que é rasgado), enoda 1) a experiência da prostituição, 2) o exercício da sexualidade e 3) os abusos, explorações e equívocos que fazem emergir o tom de alerta — “cuidado para não confiar nas pessoas erradas!” – Ela disse na oficina.

Outro elemento importante é que, no discurso de Sofia, a experiência na prostituição se diferencia da exploração pelos tios através do marco do nascimento dos filhos, do casamento (com quinze anos) e separação. Mais do que pela idade, Sofia sente que se autonomiza através destes eventos, do cumprimento de certos ritos pessoais e das produções de sentido que deles advém. Daí que o exercício do trabalho sexual seja indissociável do sustento e do cuidado da filha, de si e da família. Mas não é menos presente o sentido de marginalidade/imoralidade que ela atribui à atividade. Coexiste ainda, na sua percepção, um imaginário do luxo, através do acesso eventual a bens e serviços, mantendo a flexibilidade de horário de trabalho que permite o contato próximo com a filha na primeira infância. E ainda o isolamento trazido pelo segredo e a vida cindida.

De novo quero registrar o quanto me impressiona as idades com que as mulheres, e não só Sofia, começam a engajar-se na troca de sexo por dinheiro, ainda menores de idade, mesmo crianças. Sofia com treze, Mara com quinze, Denise com dezesseis, Valentina tinha treze ou quinze (?) e apenas Amanda com 36 anos.

Considerando, junto à história de Sofia, o caso de Mara, que engravidou aos quinze anos e que a mãe queria que ela “desse a filha” para que continuasse morando sob o seu teto, e que logo depois essa mesma mãe (“que Deus a tenha em um bom lugar”) começou a levá-la para a zona onde trabalhava como cozinheira, tendo Mara, a partir deste contato próximo, ingressado na prostituição para prover o sustento da filha, temos adultos familiares que conduzem as meninas ao contexto da prostituição. Seja através de exploração/agenciamento direto como fizeram os tios de Sofia, seja através de uma urgência do sustento, engatilhado pela chegada da filha de Mara renegada pela avó, que dizia não ter espaço para ela nem condições de cuidar e de sustentar mais um bebê. Logo depois, a mãe de Mara passa a levar a filha para a zona. Não a estimulava a fazer programas, mas foi o que acabou acontecendo, quase como o resultado de uma operação matemática.

Entendi que as mulheres, de diferentes gerações, nestas redes, transam cedo, frequentemente engravidam cedo e, neste contexto, o trabalho sexual (se é que se pode chamar assim) surge como possibilidade de sustento, diante da virgindade perdida.

Termino com a fala do tio de Sofia, que me transporta mentalmente para a história, perguntando a ela, que agora que já tinha transado, ia preferir ganhar dinheiro ou “ficar dando de graça”.

*Oficina do projeto “Para Além do Trabalho e dentro das Lutas Cotidianas: Narrativas e Imagens de Cuidado no Contexto da Prostituição no Amazonas”, que objetiva avançar na construção de conhecimento das formas de cuidado e lutas cotidianas contra violência e estigma desenvolvidas por mulheres prostitutas em Manaus, Amazonas.

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