Pane no CisTema: retenção de atualizações e represamento de demandas

Por Lukas Inverso*

Muitos textos científicos utilizam a estratificação “sexo biológico” como uma ferramenta para produção de dados. Essa lógica aplicada à distribuição dos dados epidemiológicos e em gestão vai na contramão de discussões e conceitos já bem estabelecidos nas últimas décadas[1][2][3][4]. Isso ocorre inclusive nos boletins com temática HIV/AIDS e ISTs[5], à despeito da luta dos movimentos e organizações sociais civis, indispensáveis para a garantia dos direitos à liberdade sexual e à vida, muitos deles conquistados durante o auge da epidemia do HIV/AIDS.

O uso do nome social nos prontuários de pessoas trans e travestis, por exemplo, foi pautado por Indianarae Siqueira, ex-presidenta do Grupo Filadélfia na Conferência Mundial de Saúde de 1996[6][7]. Essa conquista foi consolidada, de fato, na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde[8] aprovada no CNS de 2009, regulamentada posteriormente na Política Nacional de Saúde Integral LGBT, através da Portaria 2.836[9],  em 1º de dezembro de 2011, Dia Mundial de Luta contra a AIDS.

Além disso, é importante ressaltar a estreita relação entre os movimentos das trabalhadoras sexuais com as políticas de combate à AIDS e outras ISTs, principalmente no que tange ao cuidado, acolhimento e educação por pares[10][11][12]. Por atrelar ao contexto laboral a preocupação com a prevenção e saúde como sendo responsabilidade somente das trabalhadoras sexuais, deixando os clientes de fora da categorização de “população chave” e da estigmatização que ela acarreta, a educação por pares tem sido bastante problematizada.

O entrelaçamento desses fatos sociais, incluindo o princípio da implementação do SUS durante os anos 90 e as disputas que ocorrem desde então[13], revelam que o apagamento de vivências que estão intimamente relacionadas a esse contexto não é mais admissível, nem mesmo em um simples questionário de inscrição. Mesmo assim, muitas vezes, na utilização de dados disponíveis em estudos de séries temporais, a aplicação do “sexo” enquanto estrato social é feita sem nem ao menos contemplar pessoas intersexo, que poderiam estar representadas nessa categoria. Por esse motivo, se faz necessário o lembrete de que a própria Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT) foi atualizada[14] para inclusão dessas vivências e corpos[15].

Já no caso das Transmissões Verticais e da prevenção ao HIV, HTLV e outras ISTs no pré-natal e puerpério, a variável de “sexo biológico” atua como fator de invisibilização e potencializa violências a trans masculinos que gestam[16]. Além das violências com que essas pessoas lidam cotidianamente, as transfobias institucionais tomam diversas formas. Elas se dão tanto nos acompanhamentos trans-hormonais[17], quanto no acesso a exames e procedimentos importantes para saúde genito-urinária, que são sistematicamente impedidos ao se preencher “masculino” no campo “sexo”, excluindo a possibilidade de que trans masculinos possam ser titulares em pedidos de exames para pessoas com útero, mama e vagina. Em muitos casos, trans masculinos são compelidos a manter “feminino” em seus cadastros para conseguirem esse tipo de acesso[18]. Casos que ocorrem repetidamente e que podem abranger, entre outros atendimentos, o pré-natal, podem levar ao abandono desse acompanhamento por conta de transfobias.

Todo esse histórico em torno do HIV/AIDS, vale lembrar, contribuiu para que muitos serviços de saúde que atuam nessa área possuíssem um olhar mais integral para a população. Isso se dá eminentemente em locais que oferecem esses serviços de forma especializada, onde até mesmo os prontuários e fichas de identificação possuem sensibilidade para abordar essas questões para além da limitação do “sexo biológico”. Portanto, a forma como esses dados são disponibilizados em sistemas de informação em saúde é anacrônica ao não contemplar a variável “identidade de gênero”, “orientação sexual” e a inclusão de pessoas intersexo em toda a série histórica, sendo que construções e conquistas sociais transversalizadas pelo HIV/AIDS devem servir também de marco para informar a atualização de formulários de inscrição e não restrito aos serviços especializados em atendimento e prevenção a essa e outras ISTs.

* Graduande em Saúde Pública pela FSP/USP e pesquisadore do projeto Cosmopolíticas do Cuidado no fim do mundo. Atua no conselho gestor do SAE Campos Elíseos, na Liga da Diversidade da FSP e na Assessoria Técnica IST/AIDS-Saúde Integral LGBTIA+ da CRSN/SMS-SP. Foi educadore de pares pelo Grupo Pela Vidda RJ entre 2016-18 na triagem, acompanhamento e aconselhamento para prevenção e promoção de saúde em HIV/ISTs, dentro desta instituição e também atuou em contextos de rua e de festas. Colaborou desde a criação do PreparaNem e CasaNem.


[1]Gênero: uma categoria útil para análise histórica Joan Scott tradução: Christine Rufino Dabat Maria Betânia Ávila

[2] BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

[3] LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

[4] FAUSTO-STERLING, Anne. Sex/Gendeer: biology in a social world. Nova York/Londres:Routledge, 2012.

[5] Boletins Epidemiológicos – Linha do tempo | Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis

[6] Em direção a um futuro trans? Contribuições para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil.

[7] Entrevista com Indianara Siqueira

[8] Carta dos direitos dos usuários da saúde

[9] Portaria Nº 2.836, de 1º de dezembro de 2011

[10]  O Par e o Ímpar: o potencial de gestão de risco para a prevenção de DST/HIV/AIDS em contextos de prostituição

[11] Histórias de vida de prostitutas veteranas: memórias de trabalho e ativismo no Brasil contemporâneo

[12] Relatório Sexualidade e Desenvolvimento: a resposta nacional brasileira ao HIV/AIDS para as trabalhadoras do sexo (Sexuality and Development: Brazilian National Response to HIV/AIDS amongst Sex Workers)

[13] Projeto estabelece que gênero é igual ao sexo biológico ao nascer – Notícias – Portal da Câmara dos Deputados

[14] 17ª Conferência Nacional de Saúde – Resolução nº 719, de 17 de agosto de 2023

[15] Saúde e população LGBTQIA+: : desafios e perspectivas da Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

[16] Homens transexuais e gestação: uma revisão integrativa da literatura.

[17] Muros, frestas e atalhos: agenciamentos de pessoas transmasculinas para hormonização no Processo Transexualizador na cidade de São Paulo

[18] Aos trancos e barrancos: uma análise do processo de implementação e capilarização do processo transexualizador no Brasil