Sonhos sem sono

Provedoras na prostituição ‘quebrando a maldição’ em Manaus I

Por Natânia Lopes

Realizamos a primeira oficina do projeto Além do trabalho* na UFAM. Estávamos presentes Laura, Paula, Mara, Amanda, Denise, Valentina e Sofia e eu. Como é frequente nos eventos de pesquisa com prostitutas, já na apresentação as mulheres falaram muito sobre suas vidas. A primeira a falar trouxe o tema do ingresso na prostituição, e as demais seguiram desse mesmo ponto em seus discursos sobre si mesmas. Apresentamos o projeto brevemente depois dessas falas e de um lanche. O clima era de descontração e reencontro. Todas estávamos animadas.

Na última hora da reunião, fizemos uma dinâmica do sono, planejada por Laura, que com seu sotaque a chama de “dinâmica do sonho”. Entre falar com as mulheres numa condição de sono (luz baixa, música de fundo, todas deitadas em pufes e redes, relaxadas) e fazê-las sonhar, a voz de Laura sussurrava perguntas sobre as imagens relacionadas à noção pessoal de “cuidado” para cada uma.

Participantes na oficina do projeto Além do trabalho em Manaus

Sofia disparou de repente, ainda de olhos fechados, deitada em um dos pufes: “Cuidado para não confiar nas pessoas erradas!” A palavra cuidado foi então empregada em tom de alerta, destoando de um arco das possibilidades de definição de cuidado que eu havia suposto. E as falas que se sucederam desde o mundo do sono-sonho pouco tinham a ver com uma visão positiva de cuidado. O cuidado de si, o “autocuidado” (expressão da moda, que eu esperava ouvir), uma certa poética do cuidado, relacionado à constituição de redes através de vínculos e relações de solidariedade, a projeção de novos futuros… nada disso apareceu durante a dinâmica, num primeiro plano dos discursos das mulheres.

Parecia, aliás, que o cuidado em rede não era tanto uma coisa sobre a qual as mulheres pensam, era antes algo que elas fazem, como quem respira. (Como quando Denise começou a chorar lembrando da morte do filho e Mara, amiga há mais de 20 anos, foi abraçá-la. Ou quando Amanda e Valentina desocuparam os pufes para que Mara e Denise pudessem se deitar.)

Todas as falas, com exceção da fala de Amanda, estavam relacionadas a memórias de dor. Tenhamos em mente que, o fato de as mulheres terem sido convocadas a participar da pesquisa por atuarem como prostitutas, atravessa necessariamente as definições possíveis de cuidado no sentido de uma articulação com a experiência prostitucional. E neste sentido, o cuidado como alerta disparado por Sofia, a mais nova do grupo, evocava um estado de espírito oposto àquele trazido pelas imagens vulgares do (auto)cuidado capitalístico: imagens de bem-estar como  terapias, massagens, spa, fazer as unhas e frequentar o salão de beleza… a prática de esporte frequentemente ligada ao imperativo do “bom corpo” imaginado como um requisito da saúde; a yoga e práticas de meditação; a saúde mental; paz e tranquilidade; equilíbrio; “o que te faz bem”, como disse Michel em boas palavras. “Cuidado!”, ao contrário, é um grito e uma advertência, mais tensiona que relaxa. Tem mais a ver com se manter acordado do que com dormir. Assim, desde o mundo dos sonhos, o que emergiu foi a importância da vigília.

A maternidade era outro aspecto central nas imagens mentais do cuidado também.  Sofia, aos 24 anos, que sofreu aos treze abuso e exploração sexual pelos tios, além de dizer “cuidado!”, disse que não se interessava por manter relacionamentos românticos ou sexuais, que faz programas porque tem uma filha de quatro anos de quem deseja preservar do contato com eventuais parceiros pessoais. Evita, então, relações de intimidade.

Foi ela quem comparou a maternidade a um rasgar-se. Salientou: “vou usar esse verbo: rasgar. Porque a prostituição também é um rasgar-se,” disse. “Transar com quem não queremos, lidar com homens abusados…” “Rasgar-se” ficou sendo, para mim, a categoria que substituía e dava conta, de maneira mais precisa, daquilo que Laura chegou a chamar de “sacrifício”, no carro, na volta para casa, em conversa sobre nossas primeiras impressões da oficina. Se o sacrifício está ligado a uma noção cristã de imolação, o “rasgar-se” embora também traga a dor implicada em oferecer-se, em despedaçar-se, remete ao esgarçamento de camadas mais externas que revelam um conteúdo oculto, interno. O que se oferece então, quando alguém se rasga pelos filhos, na prostituição? O que é sacrificado?

Sofia é neta de Amanda. São três gerações de mulheres na prostituição. Amanda, duas de seus cinco filhos, e a neta, Sofia.

Mara e Valentina falaram também sobre cuidar dos filhos. Valentina disse que cuidava das filhas para que elas não passassem pelo que ela mesma passou aos dez anos de idade, embora não tenha deixado claro o que lhe aconteceu. Mara falou em batalhar para que os filhos pudessem comer, ter onde morar e “não irem descalços para a escola”. Denise, chorando muito com a lembrança da morte do filho, perguntava para onde tinha ido o cuidado com ele, as noites em claro durante o período da sua doença e internação. Que só pode vê-lo por meia hora quando foi transferido de hospital.

A fala de Amanda foi a única que destoava, no momento da dinâmica do sonho. Disse que pensou no cuidado que Deus tinha com ela. Que se sentia o tempo todo protegida e guiada. Diferente das outras, era ela o objeto de cuidado e se sentia abençoada. Talvez importe o fato de Amanda ter sido a mulher que começou na prostituição mais velha, de todo o grupo. Enquanto Sofia começou com treze a trocar sexo por dinheiro, explorada pelos tios, Mara começou com treze, levada pela mãe, cozinheira de um cabaré, para o ambiente da zona, Denise começou com dezesseis… Amanda começou com trinta e seis anos.

Embora as mulheres reconheçam na prostituição um meio de cuidar de outras pessoas, sobretudo filhos, apenas para Amanda a experiência do trabalho sexual parecia ter sido de fato uma escolha em um momento da vida já situado na maturidade, quase uma libertação de um casamento ruim.

Na segunda oficina que fizemos com as mulheres, Sofia faltou. Estava no médico com a filha, fazendo exames de rotina e o atendimento demorou mais do que ela supunha. Devo encontrá-la essa semana para lhe passar o conteúdo da reunião.

Hoje falamos sobre o projeto O Que Você Não Vê, de 2016. Mostramos imagens feitas pelas prostitutas participantes daquele projeto, e depois Paula deu uma pequena aula sobre conceitos fundamentais da fotografia, como enquadramento, composição e luz. Nos próximos dias, as participantes da oficina enviarão, para nosso grupo de zap do projeto, fotografias em contraluz (por exercício) relacionadas à suas noções pessoais de cuidado. Este material ainda não pode ser divulgado, conforme decidimos em conjunto.

*O projeto “Para Além do Trabalho e dentro das Lutas Cotidianas: Narrativas e Imagens de Cuidado no Contexto da Prostituição no Amazonas” objetiva avançar na construção de conhecimento das formas de cuidado e lutas cotidianas contra violência e estigma desenvolvidas por mulheres prostitutas em Manaus, Amazonas.

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