Da zona aos holofotes: como minha história na prostituição virou peça de teatro

Por Paula Assunção*

Catarina Domenici (ao piano), Soila Mar, Paula Assunção e Liane Venturella (Créditos da foto: Diogo Vaz)

Uma das razões para eu ter buscado essa profissão tão julgada e ao mesmo tempo tão procurada por seus clientes desde que o mundo inventou o dinheiro, é, ao mesmo tempo, simples e também complexa: para mim, ter intimidade com pessoas desconhecidas era mais fácil do que com aquelas com o peso do sentimento, do medo da rejeição e avaliação. A outra é gostar de sexo casual. Soariam banais essas palavras, tivessem elas vindo de um homem. Mas mulheres que se tornam donas do seu corpo e o transformam no seu próprio meio de produção são comumente julgadas e afastadas da posição de “mulheres para casar”. Ótimo, nunca foi mesmo meu objetivo.

Foi depois de dois anos ininterruptos atuando como profissional do sexo, com meu anúncio divulgado em alguns sites, que Juliana entrou em contato. Se apresentou como historiadora, procurando garotas de programa que se dispusessem a dar entrevista para a construção de uma peça de teatro documental chamada Meretrizes. Quando li, lembro que pensei “Uau! Querem fazer algo para o meio cultural falando de prostituição? Que corajosas!”. A gente que trabalha numa profissão tão marginalizada pelos outros, e não por nós, não estamos acostumadas a sermos colocadas em evidência, muito menos a acreditar que ofertas como essa, que nos conferem alguma importância e relevância, seriam possíveis. Por conta disso, a equipe do teatro teve muita dificuldade para encontrar mulheres que estivessem dispostas a dar entrevistas. A maioria das profissionais tinham medo da exposição, ou achavam se tratar de algum golpe, como Juliana me comentou um tempo depois.

Aceitei o convite e conheci a Camila Bauer, diretora da peça e dona de um currículo de peso, assim como a maravilhosa atriz Liane Venturella, com mais de 40 anos de palco. Ambas me entrevistaram com o objetivo de fazer aquele famoso “laboratório”, sabe? Conhecer a vida de quem está lá atuando na profissão que elas iriam encenar. E foi assim que, alguns meses depois, me vi no palco, através de uma atriz interpretando o que eu vivia e sentia na época em que dei a entrevista e até “tiques” que eu nem sabia que eu tinha.

Depois de ir à inúmeras apresentações, passei a reparar mais na reação da plateia, e é interessante como ela expressa emoções diversas. Isso porque, geralmente, os únicos sentimentos que eu via serem dirigidos pela sociedade às profissionais do sexo eram de pena, julgamento, preconceito, sempre achando que a única realidade possível vivida por nós era de estarmos presas em um lugar de dor e sofrimento onde padecemos sempre desesperadas para sairmos. Reparando no público, notei também esse olhar de pena, mas que vai sendo substituído por curiosidade, quebra de preconceitos, um interesse genuíno e o principal: admitir que não sabiam nada sobre nós, trabalhadoras sexuais – sejam as que estão nas ruas, nas boates ou nos sites.

Um dos meus momentos favoritos da peça, dando um breve spoiler, é quando a atriz fala que “vocês que se preocupam tanto com nós prostitutas, na mão desses homens violentos e cruéis, ai… eu que fico preocupada com vocês. Com nós eles passam uma hora, uma vez por mês e olhe lá. Com vocês eles ficam o resto do tempo”. Essa cena traz um choque de realidade para a plateia, que carrega o (pré-) conceito de que somos mulheres violentadas constantemente por clientes, quando, na verdade, para uma mulher sofrer violência, ela não precisa ser prostituta, basta que seja mulher.

Outro momento da peça que quebra de vez estereótipos dessa profissão acontece quando eu e Soila Mar, outra prostituta com seus 60 e poucos anos, trabalhadora das ruas há mais de 40 anos, subimos ao palco para responder perguntas da plateia. O choque começa pelo simples fato de aceitarmos essa exposição. Admitirmos em alto e bom som, literalmente, que trabalhamos com sexo, e nos colocamos dispostas a responder qualquer pergunta da plateia. Qualquer uma, mesmo, da mais tosca à mais relevante. Isso é encarado como um ato de coragem, mas para nós é um ato de normalidade. Somos pessoas, como todas as outras.

Duas perguntas foram inesquecíveis: na primeira, fomos questionadas se a roupa que vestíamos havia sido escolhida pela produção, já que estávamos “bem vestidas demais para sermos prostitutas” – pelo visto não era esperado que duas mulheres que trabalham com sexo estivessem tão cobertas. A segunda veio de um senhor, muito bem vestido, de terno, que me perguntou de forma extremamente formal, com palavras que ele acreditava serem muito complexas para o meu entendimento, claramente na tentativa de me colocar numa saia justa, qual era a “chave” que virava na minha cabeça para conseguir suportar e diferenciar o sexo com um cliente, do sexo com alguém fora do trabalho. É realmente um mistério para os homens que mulheres possam encarar o sexo como algo casual e sem sentimentos envolvidos. Com muita frequência sou questionada se já me apaixonei por um cliente, porque é quase inadmissível uma mulher ter tantas experiências sexuais sem ter nenhum envolvimento romântico.

A peça Meretrizes é um grito por respeito por todas as mulheres, não só as profissionais do sexo, já que muito do que nós vivemos é inerente a todas as mulheres, de todas as profissões. Viemos para mostrar que podemos circular em todos os ambientes, inclusive no cultural, já que a própria sociedade nos transformou numa forma de turismo, muitíssimo rentável por sinal, que movimenta economias mundiais e sustenta incontáveis famílias, até as que se consideram conservadoras e tradicionais. Julgar a realidade do outro sem vivê-la ou sequer conhecer quem a experiencia, é, no mínimo, ignorância.

*Paula Assunção é profissional do sexo, estudante de psicologia e criadora de conteúdo digital. Atua nas redes com foco em estigmas sociais e educação sexual, abordando esses assuntos através do humor. Participa da peça “Meretrizes” , teatro documental que conta a vida de prostitutas de diversas realidades. Já participou de programas como Conversa Com Bial e Podcasts como convidada e Co-Host, falando sobre o universo do sexo pago, com objetivo de desmistificar a profissão.