Cuidado com as encantadas

Por Michel Furquim

Tapete vermelho estendido para a festa de Maria Padilha das Almas na Casa de Umbanda Cabocla Herondina (Créditos: Michel Furquim)
CENA I

Maria Mulambo, que veio na cabeça de Tilinha naquela noite, pede que eu pegue uma cadeira e me sente ao seu lado. Assim o faço. Com o lenço escuro envolvendo a cabeça, uma taça com cerveja em uma das mãos e um ‘pito’ na outra, ela começa a me contar sobre sua morte.

Na terra, a sua história foi a de uma mulher assassinada por um homem que ela não amava. Depois da morte ela foi trazida de volta como uma entidade. Como uma Pombajira. Ela me conta que entidades superioras permitiram que ela voltasse para que assim pudesse se vingar de seu assassino. “Pude voltar para contar minha história. Ele não. Ele eu matei e ele não pôde voltar. Ele jamais irá voltar. E pior que morrer, ele foi esquecido”.

Maria Mulambo, entre uma gongada e outra com todas que estão ali na Casa de Umbanda Cabocla Herondina — popularmente conhecida como “terreiro do Pai Jairo” — também me conta sobre algumas pessoas que ajudou, e daquelas em que já “deu uma lição”.

Maria Mulambo dá um gole atrás do outro na taça de cerveja e, sempre que pede para um de seus filhos e filhas da casa encham sua taça, diz para que tragam mais uma latinha de cerveja também para mim. Mesmo à meia-noite, o calor amazônico beira os 30ºC. Algo novo para mim, acostumado com o clima da cidade de São Paulo. A cerveja gelada numa imensa caixa de isopor é refresco para quem está em terra naquele momento.

A Pombajira pergunta se estou estudando religiões. “Como diz quando vocês estudam religião?”. Arrisco na palavra teologia. “Isso mesmo. Você está aqui para estudar macumba?”. Conto que estou ali para estudar sobre saúde, que estou estudando como o terreiro é um lugar também de cuidado em saúde. Maria Mulambo faz uma cara confusa, e em meio a gargalhadas, “então você não entendeu nada do que eu disse a noite toda. Se você trabalha com saúde dos homens, não entendeu nada do que eu disse”.

Falo um pouco sobre meu trabalho como psicólogo e Maria Mulambo conclui: “então você cuida da cabeça”. Concordo que uma das coisas que tento entender ali é como as entidades também ajudam com a saúde da cabeça. Maria Mulambo solta mais uma gargalhada e diz: “eu ajudo sim, mas atrapalho também”.

CENA II

Era quase 9 da manhã. Mãe Samara e eu nos encontramos no Café da Loura. O estabelecimento, que era bem pequeno e ficava na esquina em frente às gigantescas caixas d’água da Cosama — a Companhia de Saneamento do Amazonas —, agora estava em um espaço muito maior, ao lado do bar Cocoloba.

Apesar de ter conhecido Mãe Samara pessoalmente em São Paulo — no I Seminário do Cosmopolíticas do Cuidado no Fim-do-Mundo, em setembro de 2023 —, nossa aproximação se tornou possível durante meu campo etnográfico frequentando as Giras e fazendo visitas algumas vezes por semana ao terreiro do Pai Jairo.  

Mãe Samara conta que estava muito cansada naquele dia e que não queria nem sair da cama, mas Maria Padilha das Almas lhe deu um “chacoalhão” e a colocou de pé. O motivo, diz minha companheira de pesquisa, foi por conta da festa da Pombajira que se aproxima. Maria Padilha quer que saia tudo perfeito. Todos os detalhes das festas são organizados por todos do terreiro, mas o(s) “cavalo(s)” que vai (vão) receber a entidade homenageada tem maior responsabilidade nas tarefas.

A festa de Maria Padilha das Almas é aguardada e organizada há meses. Antes mesmo de meu embarque para Tabatinga, a Pombajira já havia pedido através de Mãe Samara uma garrafa de Contini e um “pito de palha” (paiero) para sua comemoração em terra.

Acompanho e ajudo Mãe Samara a comprar coisas para a festa que será no final de novembro. Compramos desde comida — arroz, feijão fradinho, farinha de mandioca — até lâmpadas LED multicoloridas para deixar o barracão na Casa de Umbanda Cabocla Herondina da cor que Padilha quer: “Ela é exigente. Já mandou eu fazer um tapete vermelho para a sua entrada. Agora tenho que ir atrás de um tecido pra isso. E ai de eu não fazer do jeito que ela pede”. Mas a entidade da cabeça de Mãe Samara não somente pede: “Ela já me salvou tantas vezes. Se eu tô aqui viva hoje é por conta da minha senhora”.

“Pito” e taças de cerveja na gira da Casa de Umbanda Cabocla Herondina (Créditos: Michel Furquim)
CONHECENDO O CUIDADO

As interações em campo descritas acima — no terreiro de Umbanda na cidade de Tabatinga, Amazonas — se apresentam como cenas que me ajudam a pensar sobre o cuidado.  O cuidado tem sido um fio condutor para compreender como são produzidas redes que fortalecem, fazem florescer e compõem mundos, especialmente de grupos historicamente estigmatizados.

Levando em conta as cenas trazidas como constitutivas de uma rede de cuidado que se compõe em um terreiro de Umbanda com “as vivas e as encantadas”, ou, pensando numa ideia de rede sociotécnica de Bruno Latour, com humanos e mais-que-humanos, o que se pode conhecer sobre cuidado?

Essa pesquisa em desenvolvimento, assim como o projeto Cosmopolíticas do Cuidado no Fim-do-Mundo, está conectada com a Faculdade de Saúde Pública da USP. Desse modo, se torna necessário apresentar essas outras experiências e formas coletivas de sobrevivência como um primeiro passo para que outras perspectivas de cuidado possam vir a se tornar parte da produção na Saúde Coletiva.

As trajetórias que compõem esse projeto vêm produzindo ricos entrelaçamentos com trabalhos de campo que, pouco a pouco, cada um em sua particularidade, possibilitam multiplicar os sentidos em que se pode pensar o cuidado.

Os esforços coletivos e os empreendimentos etnográficos em Tabatinga, São Gabriel da Cachoeira, Manaus e São Paulo são potentes redes para conhecer e compreender como os ideais de cuidado cruzam com as condições, muitas vezes precárias, de cuidar.

Nesse pouco tempo no trabalho etnográfico com a Parcela 2 do projeto, realizado no Alto Solimões — mais especificamente no “terreiro do Pai Jairo” — é possível perceber que cada encontro com esses sujeitos no trabalho de campo se tornou também um encontro com a estranheza da alteridade entre eles e eu. E na estranheza, fora da normativa, há também mundos.

Considerar outros sujeitos nas redes de cuidado — que possibilitam a existência e a resistência de corpos que não são tidos como importantes — é também repensar outras cenas de cuidado, assim como outras possibilidades de sujeito. Se os limites da carne não são os limites do corpo, quem são os sujeitos e até onde se estendem as cenas do cuidado para pensar saúde?

Cenas onde as coisas podem dar errado. E elas dão. Quando uma ‘rasteira’ pode mudar as rotas do seu dia ou pode te livrar de virar na esquina errada no meio da madrugada. Práticas e cenas que são costuradas peça por peça, ainda que provisoriamente, e então a vida continua ou não.

Acompanhar as incorporações das Filhas de Santo e conversar com as Entidades, as Pombajiras, os Caboclos ou os Encantados se apresentou como um outro plano de cuidado, em que os corpos que sabem exteriorizam seus saberes nas relações com quem também compõe as Giras. E alguns desses “cavalos”, com quem desenvolvi maior proximidade, me mostraram que a relação com as entidades vai muito além do corpo carnal e do espaço do terreiro. As relações afetivo-sexuais, trânsitos e mudanças de território, vida financeira e material, são negociadas diariamente nessas relações.

Assim como o encontro entre o sujeito que incorpora e a Entidade também se apresenta como único e singular, ele será diferente dependendo do corpo que recebe. Considerando o corpo o lugar de saber contínuo, e considerando que seus limites não se encerram no hidrogel, no perlutan, nos fluidos, quais saberes esses encontros tornam possíveis? Essas substâncias, consideradas como próteses químicas que modificam o corpo, consequentemente modificam como esses limites carnais são codificados pelo mundo. “Travesti tem muito de Maria Padilha: dribla até a morte”, me diz uma companheira de pesquisa em São Paulo. O que acontece quando Maria Padilha então se encontra num corpo travesti?

No acompanhamento das relações no terreiro, guiado pelas humanas e as mais-que-humanas, se abre uma outra possibilidade de pensar o cuidado para a saúde, levando em conta esse corpo composto por próteses químicas, tecno-orgânicas, e com extensões ancestrais.

Quando Pombajira, que evoca o prazer, os desejos, a noite, o sexo, o cabaré, a “balinha”, o “pito”, a “navalha” e as contradições, aponta também que sem corpo não há sagrado. Sem corpo não há cena, tampouco há cuidado. Considerar os cuidados vindos de corpos dissidentes, e que não se limitam a prédios institucionais, possibilita uma outra rede de agenciamentos possíveis, diante de um mundo de ameaça em que grupos historicamente estigmatizados sobrevivem.

A aposta de que pode ser um caminho produtivo e efetivo pensar o cuidado em Saúde Coletiva como essa cena inusitada, imprevista, não deixa de lado as desconexões, dissensos, “rasteiras”, a exigência de cortes. Ela se justifica quando passamos a considerar que o cuidado é composicional, que é complexo, com múltiplos sujeitos envolvidos e diversos mundos relacionados.

INSPIRAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

OLIVAR, J. M. N. A Terreiro That’s “Too Young, Too gay”: Technologies of Persistence and growth in the W/world. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 20, p. e20603, 2023.

PRECIADO, B. P. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornografica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

CADUFF, C. Hot chocolate. Critical Inquiry, v. 45, n. 3, p. 787-803, 2019.

DE LA BELLACASA, M. P. ‘Nothing comes without its world’: thinking with care. The Sociological Review, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012.